sexta-feira, 9 de outubro de 2015

uma nuvem

Sou uma aparição fastamagórica
Puro ego
Destituído de matéria.

Já não há mais metáforas.

Escorrego entre corpos espírito ideais
Nuvem densa e trêmula
Entre postes rígidos iluminados.

Na poça vejo o poste aceso
Vigiado por três janelas do sobrado
É quarta-feira de cinzas:
O touro bêbado trepa na anjinha borrada;
A cavalaria policial espalha estrume pelas ruas e uma fumaça indiferente de cigarros baratos;
Pardais atacam os restos do hamburguer de um super-herói desfalecido na calçada;
Uma cena típica, enfim.

A porta do sobrado é a única sombra
Pelas janelas vejo um papel-de-parede colorido
Todo o resto é luz monocromática
Dessaliente
Atravessando a retina inexistente
De uma nuvem.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

genealogia

vaguei pela mata escura
pisando onde só meus pés conheciam.

quando um vão encontrei
e cheguei à clareira
um leão me abocanhou
e me abrigou no ventre negro.

depois de imemorável tempo
fundimos em espírito
e antropomórfico corpo:

já não éramos leão nem humano.

trepamos na árvore de dura casca
onde a mata começa e o mato acaba
e a cada unha cravada
mais árvore nos tornávamos.

depois de imemorável tempo
fundimos em espírito
e vegetantropomórfico corpo:

já não éramos árvore, leão nem humano.

lançamos raízes pelo macio solo
onde tantas outras se entrelaçam
e a rocha que encontramos
abraçamos com todas as nossas forças.

depois de imemorável tempo
fundimos em espírito
e mineravegetantropomórfico corpo:

já não éramos rocha, árvore, leão nem humano.

permanecemos em imóvel iluminação
onde toda felicidade parece possível.
tivemos a chuva, o vento e o sol
como eternos companheiros.

mas depois de imemorável tempo
fundimos em espírito
e planetário corpo.

éramos cósmicos.

domingo, 24 de agosto de 2014

viagem ao interior

cana
eucalipto
laranja
pasto

o asfalto da autopista
exala vapores de oásis

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A respeito de Tcharafna


Acompanhar o trabalho do Gui Mohallem é acompanhar a inquietação contínua que marca o artista. Tcharafna é como o espelho que Gui encontrou ao não temer o incerto da sua evolução: o espelho que já lhe deu as boas-vindas agora lhe recebe para anunciar com crueza what’s all about – o que foi, o que é, o que será.

Como na natureza branca do delírio de Brás Cubas, Gui descobre mais uma camada – desilude-se um pouco mais –, onde encontra um pertencimento profundo, já fora das dimensões binárias: sua névoa característica, explorada tecnicamente como uma obsessão nos seus trabalhos anteriores, encontra sua matriz original, o branco eterno do Monte Líbano, a raiz.

Com Tcharafna, Gui deixou de ser somente fotógrafo e passou a se desdobrar como artista. Seu domínio da técnica fotográfica permanece como sua mídia primordial, mas sua postura e seus processos ultrapassaram a linguagem que lhe abriu as portas.

A mensagem é clara: no centro de tudo, três caixas sustentam uma cera-emulsão vermelha prestes a derreter e levar consigo, num rito sacrifical, os fotogramas-raízes. O artista-autófago deglute sua origem como quem sorve saborosos quitutes numa tigela de porcelana. Na estrada, seu destino ainda é a estrada. E que assim seja.



--------


A tempo: Neste sábado, 29 de junho de 2013, às 15hs, Gui estará na Galeria Emma Thomas para um bate-papo sobre o trabalho.

sábado, 22 de setembro de 2012

uma faca
só lâmina

o assassino sangrará
a mão

para furar
da vítima
o coração

quinta-feira, 3 de maio de 2012



do que se dizia ser o fim do mundo restou um par de tijolos. ninguém viu:
estava aqui.


as árvores foram novamente caídas
e as pedreiras desfeitas novamente
mas um céu azul - que se embranquece no horizonte.

no vazio, as estrias vesgas da nossa melancolia.

e tudo o mais
[ travessia ]

What reminiscences of a human subject suffering from progressive melancholia did these objects evoke in Bloom? 

terça-feira, 18 de outubro de 2011

FIM

"Isto é o fim, ele pensa. E o fim nunca termina."

André de Leones, no "Dentes Negros"

sábado, 8 de outubro de 2011

Coluna romana


coluna, panteão, roma/2011.
repensando aquela foto do mec-rio (link)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

terça-feira, 23 de agosto de 2011

descarga

os técnicos passaram com o caminhão da companhia de eletricidade distribuindo a nova fiação pelas ruas e o zelador estava ocupado em cortá-la para ligar ao circuito do prédio quando chegamos e não pudemos entrar com nosso carro. pulamos a grade por um canto com as pizzas e os refrigerantes na mão e atravessamos uma bacia de areia cheia de cacos de vidro de garrafas de bebidas alcoólicas para chegarmos no nosso apartamento. como estava com os pés carregados de areia, gastei um bom tempo batendo-os no capacho da porta do banheiro, cômodo no qual estava resumido nosso apartamento. senti orgulho da minha conduta, como uma criança que aprendeu a andar, talvez. e talvez por isso, mas isso é incerto, juntei dois pedaços de pizza, piquei-os como folhas de papel e, mediante um raciocínio meio melindroso, conclui que seria mais adequado jogar os pedaços no vaso sanitário - o que, naturalmente, só me fez mais orgulhoso de mim.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Matisse, de novo


não é brincadeira. o bom e velho Henri, emocionado com o aumento da família, fez questão de nos presentear com um pout-pourri - desta vez, munido de lápis de cor e pastéis de várias cores.

domingo, 7 de agosto de 2011

flores e cerâmica

vocês não vão acreditar, mas o velho Matisse esteve por aqui de novo. nossa situação era ainda mais precária e desta vez só tínhamos uma bic preta e um moleskine.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O Enterro

O féretro sairia às 11:30 da porta do Teatro e, não fosse um erro banal de planejamento, chegaria ao cemitério no meio-dia. Subindo 10 metros pela rua e depois seguindo a Avenida, o cortejo não teria dificuldades em encontrar o túmulo já reservado ao falecido diretor. Seu Dalto, zelador indignado do Teatro, naquela mesma tarde comentou com Dona Maria, faxineira:
- Esses filhos da puta não fazem uma merda que seja certa.
Seu Dalto tinha razão. Acostumados a perambular a pé pela região, os organizadores se esqueceram de que aqueles 10 metros de rua eram contramão. E pior: só perceberam depois do carro fúnebre iniciar o trajeto e andar o quarteirão todo. Na primeira esquina, foram despertados pela hesitação: se virassem à esquerda, logo em frente teriam que descer à direita, saindo no Largo, entroncamento confuso que suas mentes não conseguiram desmistificar. Se pegassem a direita, obrigatoriamente teriam que virar à esquerda, caindo no mesmíssimo Largo.
O carro fúnebre parou e o cortejo, estendendo-se por todo o quarteirão, permaneceu parado, com os respectivos pisca-alertas acionados e os óculos escuros a esconderem o rebuliço dos entreolhares. Aqueles que ainda não tinham entrado na rua, depois de 2 minutos, resolveram seguir direto para o cemitério. E por causa de um infeliz que se encontrava ali no meio para deixar seu carro num estacionamento e ir ao escritório do seu contador, ninguém mais conseguiu dar ré. Ele tampouco queriar recuar a 20 metros do seu destino final e isso inaugurou um buzinaço, não é preciso dizer, incompatível com a ocasião.
O motorista do carro fúnebre, um sujeito apático, aguardava a resolução dos organizadores que, nesse momento, estavam tentando argumentar com o infeliz intrometido. Depois de 15 minutos de conversas, bate-bocas, vira-costas etc, percebeu-se que a Ré era impossível. Teriam que decidir: direita ou esquerda?
Seu Dalto afirmaria até o fim dos seus dias que não via razão para que não tivessem seguido pela esquerda, depois direita e depois, na segunda à esquerda, subissem até o fim para virarem novamente à esquerda e daí, seguindo o fluxo, caírem na Avenida do Cemitério. Já Dona Maria, gargalhando largamente, achava que pegando à direita, seguindo o sentido obrigatório à esquerda, depois virando na primeira à direita, seria possível pegar uma rua que cairia no começo da Avenida. Mas Seu Dalto, do alto do seu Monza 92, afirmava pigarreando:
- Não. Ali só ônibus.

(a continuar)